Presa no aeroporto de Caracas por 4 dias

Frio na espinha na polícia federal.

O calafrio é costumeiro.  Toda vez aguardando passar a imigração. Não que seja justificável.

Seu intuito de viagem nunca foi realizar o sonho de trabalhar lavando pratos ilegalmente.  Nem que, necessariamente, você engoliu papeletes de conteúdo suspeito. Muito menos, está carregando um bebê a tiracolo visando o contrabando de órgãos.

A hesitação, mesmo assim, não é voluntária. Todo o clima de tratá-lo como um suspeito, faz você se sentir um criminoso de alto risco pela Interpol.

Shutterstock
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Enfardados, que passaram anos treinando a cara de mau na academia policial, indagam quantos dias pretende ficar no país. Qual o número da sua reserva no hotel.  Quantas bombas você tem na mala.

-3!  

“- Não, péra, essa era quantidade de dias. De dias!!!  ”

E quando vê já está preso em um quartinho com labradores cheirando sua mochila atrás das três bombas declaradas.

https://www.flickr.com/photos/modenadude
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Foi um inequívoco desse que achei que houvesse cometido, a ser gentilmente convidada para ir para a famosa salinha, ao tentar entrar em Caracas. Mas não, a obstrução da visita tinha um motivo real: meu passaporte tinha que ter validade mínima de 6 meses, mas expiraria em 2.

Não tinha percebido, afinal, essa da expiração futura do passaporte é uma regra nunca reforçada. Mas, para minha sorte, nossa eficiente polícia federal brasileira andava mandando de volta uns venezuelanos com passaporte que venceriam em menos de 6 meses. E dá-lhe reciprocidade diplomática.

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Com aquela voz trêmula de culpada, como se tivesse carregando periquitos exóticos da Mata Atlântica na calcinha, tentava explicar que meu passaporte estava válido ainda. Só passaria o Carnaval por lá.

“- 4 dias, solo me quedo 4 días, Señor!”
 

 Chorei. Mostrei o decote. Declarei minha integridade moral enquanto profissional, mãe de família e cristã. –

Técnicas essas, que outrora haveriam funcionado em outras fronteiras latino-americanas.

 
“- Callate y vuélvete a Brasil!”
Venezuela.embassyhomepage.com
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Nada funcionou para o exímio  funcionário da borda venezuelana.  Seria mandada de volta no próximo voo da TACA. Com mais quatro amiguinhos nas mesmas infortúnias condições.

Mas nele só havia lugar para três, e concordei em pegar o voo seguinte. Confesso que a cortesia solidária tinha um fundo de esperança: dissuadir da ideia o próximo turno policial, talvez menos treinado. Ou na atuação da embaixada brasileira. Afinal, quem passa 8 horas viajando, aguarda mais umas três ou quatro horas.

Mas não foram 4 horas, e sim 4 dias. Esqueceram de informar, no acordo, que avião só fazia a rota duas vezes por semana. O próximo voo era dias de distância.

Brados, destruição de balcões vazios de atendimento e telefonemas a cobrar, nada adiantavam depois das dez da noite. Aeroportos viram cidades-fantasma.

By Wilfredor (Own work) [CC0], via Wikimedia Commons
By Wilfredor (Own work) [CC0], via Wikimedia Commons
Às 11, era só eu mesma. E hora de fazer um inventário dos bens em minha posse:

No corpo, um vestido verde curto.  Um livro. Um cartão de crédito que não era aceito em nenhuma loja. Uma garrafa de Absolut Vanilla do Duty Free.

A falta de recursos monetários deveu-se à falta de preparo para contingência. Teoricamente, tinham encomendado sacos verdes de dinheiro local, estampadas com um cifrão, com um contrabandista local. Mas do lado de fora da imigração.

ShutterStock
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Ao longo de quatro dias sem passaporte, descobri que não há local melhor para um treinamento intensivo de mendigo que um aeroporto.

Comi todas as refeições em uma rede de fast food local. Atenciosos atendentes não ligaram de trocar por doses da vodka após o expediente.

A internet, usei horas a fio, em um stand que a mocinha adorava praticar portunhol.  Mérida, a atendente, até se passou por Vanessa, levando meu cartão para comprar do lado de fora do aeroporto: a calça jeans mais cara da minha vida.

Outro passageiro, em uma conexão longa (por opção),  convenceu a comissária de uma aerolínea qualquer a surrupiar uma manta da primeira classe.

O banheiro de deficientes virou um quarto privado pela noite – mais privacidade que alguns hostels que tinha reservado.

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Ao terceiro dia, com uma rotina quase estabelecida, fui resgatada ao pela vice cônsul do Brasil. Foi um prazer quase monástico ver o sabão-diplomático-bem-dado aos ilegais retentores do meu passaporte.

Mas a surpresa foi pela camaradagem e solidariedade humana, enquanto brincava na versão brasileira, Herbert Richers, de “O  Terminal”. Nada faltou, sobraram amigos.

www.fanpop.com
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Foi um Carnaval (quase inteiramente) frustrado. Horas em um voo buscando de uma experiência cultural e antropológica enriquecedora , dignas de nota na carreira de viajante.  Pensando bem, dessa, tive em dobro.

*Foto destaque: Ditty_about_summer – shutterstock.com