
Quando o caminho também é passeio
Esses dias tinha que ir ali, ali aqui no coração da Vila Madalena, e o dedo foi direto no Uber. Estava cansada, atrasada, com a sensação de que o trajeto era um preço a pagar para chegar logo no destino. Aí eu não pedi.
Não foi um ato heroico. Foi mais um “deixa eu tentar diferente hoje”, misturado com “aproveitar que eu não foi à academia”. E, sinceramente, eu acho que é assim que as mudanças boas entram na vida: sem cerimônia.
A cidade quando a gente não fura o percurso
Quando eu vou de carro por aplicativo, eu chego. Quando eu vou a pé, de metrô, de ônibus, eu percebo que estou indo. Isso, com filhos, muda tudo. Eles que me ensinam a enxergar.
No caminho, aparece a banca que nunca tinha notado. O senhor que dá bom dia como se fosse parente. Um muro grafitado que vira conversa. A subida que explica por que aquele bairro tem aquele nome. A criança que se encanta com uma coisa que a gente adulto já tinha apagado do olhar: um reflexo na poça, um cachorro dormindo em cima do próprio rabo, uma árvore fazendo sombra “do jeito certo”.
A gente subestima o quanto o deslocamento é um tipo de experiência — e não um intervalo neutro entre dois pontos.
A anestesia das quatro paredes
Eu uso aplicativo. Claro que uso. Tem dias em que ele salva. Mas eu venho percebendo uma coisa: ele é eficiente demais para o que eu às vezes preciso. Porque o que eu preciso nem sempre é eficiência.
Às vezes eu preciso de ritmo. Ando falando muito em palestras que precisamos ligar mais o nosso modo “imaginação” e em vez do “modo tarefa”- isso é realmente duas formas do cérebro operar, os neurocientistas chamam de deafult mode network. É por isso que todas as soluções da nossa vida surgem no banho – ou num passeio. Se estamos no carro, estamos no celular.
Quando o trajeto vira só logística, perco a chance de me reencontrar no mundo. E eu não digo isso num tom místico; digo no sentido mais banal: meu corpo lembra que existe, meu olhar volta a escolher onde pousa, meu pensamento desacelera só o suficiente para uma ideia aparecer.
E tem um dado que me deixa com uma pulga atrás da orelha: pesquisas recentes sobre mobilidade na RMSP têm mostrado aumento de viagens por aplicativos e queda na participação do transporte coletivo motorizado. Isso não é só sobre preferência individual — é sobre o tipo de cidade que a gente vai normalizando. FGV Cidades
A jornada é sala de aula
Tive uma conversa de vinte minutos nascer com meus filhos porque a gente decidiu ir de metrô e alguém perguntou por que as linhas têm cores. Falamos com desconhecidoss (com a delicadeza de quem ainda não aprendeu a ter vergonha). A pergunta de “quanto falta” vira “ah, quero ficar mais, vamos até o final?
Não é romantizar. É reconhecer que, com criança, o caminho é o. próprio programa.
Minhocão: um lembrete de que a cidade pode ser reapropriada

Tem um símbolo muito bom disso em São Paulo: o Minhocão quando fecha para carros e vira espaço de gente. Há debate sobre o futuro dele e a prefeitura planeja a desativação total antes de 2029, mas o fato é: quando vira “parque temporário”, a cidade lembra que pode ser diferente. El País
No fim, talvez “ir sem Uber” seja isso: não uma regra moral, mas um jeito de devolver presença para o cotidiano. Uma jornada sensorial, um mapa imaginário, um caminho. Que não tem a chegada como objetivo.