Já estava na hora de tirar vantagem do anywhere office. Entre calorias e uma exaltação fora do comum à beleza e à simplicidade, a gente descobre que viajar tem também o condão de nos reconciliar com a humanidade
Quando decidi morar em Londres, um dos meus objetivos era estar mais perto da Itália. Ao longo do tempo, ele foi alcançado com sucesso. Com a pandemia, me parecia impensável ter ficado mais de um ano e meio sem ir pra lá, de uma pessoa que chegou a visitá-la seis vezes ao ano.
A Itália sempre foi o meu respiro. Quando casei com Londres, as minhas escapadas mais se traduziam como se eu estivesse com um amante. Entendi, então, que vivo uma simbiose com os dois países: quase que não consigo ficar sem o outro e vice-versa.
Mas finalmente consegui planejar novamente minha viagem para lá, do jeito que eu queria, e acomodando a nova realidade pós pico da pandemia: incluindo trabalho a distância. A vantagem de conhecer bem um país é poder voltar e escolher lugares que ninguém prioriza muito conhecer, e explorar a fundo aqueles que a maioria conhece e não cansamos de voltar.
Eis que dessa vez visitei uma das minhas melhores amigas, italiana, que recentemente voltou a morar lá, onde firmei base. Incluí muitas cidades no meu roteiro, sendo Crema, na Lombardia, a cereja do bolo. Ela já havia me seduzido muito antes, e assumo que desde que eu a vi pelas lentes do filme “Call Me By Your Name”, se tornou praticamente irresistível.
A cidadezinha perto de Milão possui uma beleza irritantemente perfeita, uma serenidade invejável e uma sofistificação típica dessa região do norte da Itália. Daqueles endereços no mundo onde sua única preocupação é escolher em qual gelateria finalizar a sobremesa. Eu encontrei ali a luz do sol de outono que eu tanto buscava, um banquinho para chamar de meu para observar a italianità de uma ótica nostálgica, e espaço para andar por suas ruas coloridas sem olhar para o relógio, num momento íntimo em que ela se apresentou a mim e posou sem timidez para inúmeras fotos.

As alegres cores pastel numa cidadezinha da Lombardia: Crema é a razão viva do porquê sempre voltamos à Itália. Foto: Natalia Baffatto
No dia seguinte, Mantova, que ficou no meu imaginário após assistir à série italiana “O Processo”, na Netflix. Talvez meses em lockdown me permitiram sonhar. Felizmente, materializar. O ponto forte foi descobrir cantos culinários, vivendo literalmente o dolce far niente, naqueles achados onde você é praticamente um convidado na sala de estar. Se você já viveu isso numa visita à Itália, você oficialmente sabe o que é ter uma autêntica experiência italiana.
Ela te faz recordar que a Itália é um convite a todo instante para exaltar o prazer e a beleza, experiências que esquecemos muitas vezes nas tarefas do dia a dia. Podemos meditar, podemos encontrar amigos, trabalhar no que gostamos, vivermos um relacionamento amoroso satisfatório, mas esquecemos às vezes o prazer de viver o belo num momento a sós e a paixão que isso acompanha. Puro hedonismo.
O forte de Mantova é o Palazzo Ducale, onde há uma famosa sala de afrescos denominada “Camera degli Sposi“. Um espaço silencioso que te introduz à beleza da arte. Um encontro com nossos antepassados. Uma comunhão com o mistério e costumes de outros tempos. A visita ao palácio inclui outros afrescos lindíssimos, que marcam a história do homem de outrora, com pinturas que registram da astrologia às batalhas de Aquiles. Diante da criação do homem, a gente descobre que viajar tem também o condão de nos reconciliar com a humanidade.
A viagem continua, de trem. É uma pausa para processar novos momentos e memórias. Segui caminho para Verona e Veneza posteriormente, com encontros inesperados, prazeres da mesa e uma poesia a céu aberto, finalizando a semana em Milão. Cidades que revisito sempre, e em cada visita, relembro o porquê me deixam saudades. Em ocasiões assim, liberte-se de roteiros e siga seus instintos para encontrar becos e ruelas que se apresentam espontaneamente, e deixe-se levar pelas calorias. Elas vão embora, enquanto o prazer, esse fica na memória. Prazer, sempre ele.
De volta a Novara, no belo Piemonte, região que me sinto revitalizada e familiarizada, passamos um belo weekend no Lago Maggiore, encatador, mas ofuscado pela popularidade do de Como e o de Garda. Não queria ir para o sul do país e tentar pegar uma praia em outubro, como já fiz, mas eu buscava mesmo o luxo dessa simplicidade de águas mais calmas e menos salgadas. Um convite a passar tempo com quem se ama, com quem se ri e com quem se chora.
Já havia acalmado o coração e a ansiedade de quase dois anos sem ir à Itália. Na semana seguinte, depois de dez dias seguidos passeando pelo Bel Paese, trabalhei de Novara por uma semana. Finalmente vivendo o tão aguardado anywhere office. Mas com a doçura e preguiça italianas.

O majestoso Lago Maggiore e os prazeres de um fim de semana trabalhando para um país e curtindo o lazer no outro: as dádivas do anywhere office. Foto: Natalia Baffatto
O resultado, vejam só, foi de muita produtividade, e escapadas na hora do almoço para contemplar a vida que ganha movimento no almoço, que nos desperta para a alegria da pausa, de comer juntos, com calma, sem se dar esse luxo apenas em momentos de lazer durante o fim de semana. Há uma brincadeira que diz que os italianos, de tanto que conversam entre si, não precisam de terapeutas. Bem, verdade ou não, uma pequena temporada na Itália sempre nos ensina o valor daquilo que importa.
Outro fim de semana no lago. Que maravilha é essa de poder trabalhar para um país, mas estender o passeio em outro? Penso que esses presentes são recompensas de um período um pouco conturbado. Era hora de voltar pra casa, mas quase um mês revivendo essa experiência tão esperada, me fizeram voltar para casa em paz. Afinal, agora que parece vermos o arco-íris depois da tempestade, podemos colher um pouco os frutos dessa mudança no cotidiano mundial com a relação que temos com nosso trabalho e a mobilidade. Viva a Era de Aquário.
O resumo da ópera é que minha rotina ganhou novo sentido e, mais do que nunca, tive a confirmação de que o outono italiano fica na memória como a imagem que representa todos os outonos do mundo.
Finalmente voltar para Londres não é apenas uma decisão porque preciso voltar à rotina, mas uma decisão serena de estar bem com a escolha que fiz, e saber que, quando eu precisar desse abraço italiano, ele me acolhe rapidinho.
*Foto capa: Natalia Baffatto