Não visite Barcelona: uma carta de desamor para a cidade

Não venha a Barcelona. Eu, que já defendi que todo mundo mereceria morar aqui pelo menos uma vez na vida, peço para que você visite outro lugar. A beleza, o sol, o mar, as palmeiras e os sorrisos das pessoas viraram um tapume barato de clima Mediterrâneo que esconde uma cidade que está esfarelando e tratando muito mal aqueles que escolheram construir uma vida aqui para além de um verão. A sua paella, o seu vinho, o seu pau de selfie e a sua bebedeira estão empurrando Barcelona para a beira do mesmo abismo por onde Veneza caiu.

Foto: Barcelona por Josep Lago/AFP via Getty Images

Moro em Barcelona há pouco mais de seis anos e acompanhei em primeira pessoa muitas transformações da cidade. Quando cheguei, em 2012, a crise espanhola tinha engolido tudo. “Mas você vai mudar para Barcelona justo agora, Amanda?”. Fui porque sim, porque taurina, porque a teimosia me mandou. Lembro de chegar e encontrar uma cidade quase morta, respirando com a ajuda de aparelhos: muitos, muitos, muitos pontos comerciais fechados e ruas semidesertas, bancos quebrados, pessoas em situação de rua, uma taxa de desemprego altíssima e pouquíssimos motivos para sorrir além do jogos do Barça. O turismo estava lá mas era limitado e restrito.

A manobra no transatlântico funcionou graças a uma política austera (recortes para tudo que é lado) e uma afrouxada nos impostos para atrair investidores. Lá por 2013/2014, a cidade começou a sair do buraco, impulsionada pela exploração de Barcelona como uma potente marca de turismo e lifestyle: temos sol, temos mar, somos felizes, tomamos vinho no almoço, os preços são baixos, as regras maleáveis, e vocês podem fazer o que quiserem por aqui. Transformaram Barcelona no quintal ensolarado da Europa.

Plataformas de aluguel de casas e apartamentos encontraram em Barcelona uma rua dourada e ainda pouco explorada. Por que lucrar 800 euros com o aluguel de um apartamento na beira da praia se posso alugá-lo a turistas por 1000 euros a semana? Sai de cena a família catalã que seguia apanhando da ressaca da crise e suava para chegar em 800 euros mensais e entra a turma de despedidas de solteiros de jovens britânicos que vem gastar suas libras e fazer absolutamente tudo o que é proibido lá em casa. Barcelona is amazing, mate!

O comércio local, as lojinhas de toda a vida e os pequenos produtores caíram na mesma vala dos aluguéis abusivos. O produtor de azeite ou a loja de instrumentos musicais que leva séculos ali não pode com aluguéis de três mil euros, mas grupos de fast-fashion, de fast-food e de lojas de souvenires cafonas sim. Sai o restaurante onde a abuela cozinhava, entra mais uma padaria da 365, uma Zara ou um lugar de brunch que no ano que vem será uma sorveteria e, no outro, um bar de gin tônica. Barcelona está virou um bacião do qual todo mundo sai usando a mesma roupa.

Nessa de empurrar para fora quem tem menos, o centro da cidade (que nunca esteve livre das cafonices e barbaridades do turismo massivo) foi perdendo vida, foi perdendo gente, foi perdendo cor. No lugar, deixaram uma mistura amorfa de cor estranha que te faz perguntar se isso é mesmo Barcelona ou um bairro comercial qualquer de uma cidade grande à sua escolha. Barcelona está perdendo sua alma (ou a vendeu para o coisa ruim?). Claro que restam as belezas de Gaudí, as obras de Picasso e a gastronomia catalã. Mas a cultura resiste e se apoia para não cair no vão entre dois bares de tapas congeladas.

Mesmo com Gaudí e Picasso, o centro da cidade já não pertence a Barcelona. Ele é dos turistas e dos grandes grupos que enchem o bolso vendendo tranqueiras. Quem vive na cidade desvia do centro e o evita a qualquer custo. Quando o desvio é impossível e o morador se vê obrigado a cruzar o Gótico, o Born ou a Barceloneta, o fantasma do turismo massivo vem gritar que seu lugar não é ali. Aconteceu comigo, na semana passada, na volta de uma consulta no dentista na Barceloneta.

Voltei a pé por dentro do bairro e atravessei pelo Born depois de mais de um ano sem passar por ali. Refiz o caminho que muitas vezes embalou minhas voltas da praia, alguns romances, muitos sorvetes e várias noites felizes. Nem sinal da alegria que eu senti tanta vezes para me encher de nostalgia. Desci até praia, passei por algumas praças e procurei por algum sinal que me lembrasse da cidade que me fez deixar o meu país. Nada. A minha Barcelona já não mora mais aqui.

*Foto de capa: Oliver Niblett no Unsplash