Wynwood – o que o Dória viu no bairro de Miami

A gestão do atual prefeito de São Paulo, João Dória, não tem nem um mês mas já coleciona polêmicas. Uma das maiores delas é a batalha que ele travou contra grafiteiros e pixadores com sua campanha Cidade Linda. O circo se montou nas redes sociais com a polarização radical da população. Parte da ação de Dória prevê a criação de ‘grafitódromos’, espaços dedicados exclusivamente ao trabalho de grafiteiros, ideia tirada de um bairro de Miami: ‘”Vamos ter como tem em Miami uma área da cidade chamada Wynwood, (…) para que essas pessoas possam expressar a sua arte de uma forma livre, expressiva, com uma área a ser determinada.” – disse em entrevista. Eu já estive lá visitando, e realmente é um lugar excepcional, interessantíssimo e cheio de vida. Resolvi então pesquisar para conhecer e entender melhor o bairro, e buscar assim as ideias que podem ser trazidas para a minha cidade pelo prefeito.

Entrada do Wynwood Walls, galeria de arte de rua a céu aberto em Miami - foto: Renato Salles
Entrada do Wynwood Walls, galeria de arte de rua a céu aberto em Miami – foto: Renato Salles

Wynwood era, até o começo do século 20, parte de uma fazenda afastada de Miami. A urbanização começou por lá com a compra do terreno em 1917, e criação de um parque na região. A partir da década de 20, famílias de operários se estabeleceram, junto com algumas fábricas, como a American Bakeries Company, a Coca-Cola e uma engarrafadora de suco de laranja. Com o tempo, o bairro passou a fazer parte do Garment District (algo como o distrito das roupas), e a partir dos anos 60, se tornou ponto de chegada de cubanos fugidos da Revolução, e porto-riquenhos que conseguiam emprego por ali.Aquela área chegou a ser conhecida como Little San Juan. Os anos 80 marcaram o auge dessa fase em Wynwood, com preços ficando muito altos, e as grandes fábricas e oficinas finalmente se mudando em busca de regiões mais baratas.

Faixas de pedestre grafitadas em Wynwood, Miami - foto: Renato Salles
Faixas de pedestre grafitadas em Wynwood, Miami – foto: Renato Salles

Já no fim dos anos 70, Wynwood virou uma grande mistura de imigrantes, somando grupos de colombianos, haitianos, dominicanos e outros. O bairro era considerado de classe média-baixa, e sofria com problemas graves de violência e tráfico de drogas. Mesmo os imigrantes que chegavam, ficavam o mínimo tempo possível antes de se mudarem para algum lugar melhor. A própria American Bakeries Co. saiu do seu galpão em 1981 e o largou abandonado por 4 anos.

Terreno baldio com muros grafitados, Wynwood - foto: Renato Salles
Terreno baldio com muros grafitados, Wynwood – foto: Renato Salles

A transformação de Wynwood de boca do lixo para um dos bairros mais trendy de Miami se deu em grande parte por dois fatos. O primeiro foi a compra do galpão da ABC por uma ONG formada por estudantes do South Florida Art Center, expulsos de Coconut Grove pela gentrificação. Chamado de Bakehouse, o edifício se tornou o maior ateliê de artistas da Florida, em funcionamento até hoje. Ela chamou a atenção de galeristas da cidade, que viram ali oportunidade de achar espaços grandes com bons preços. Entre as primeiras grandes galerias de arte a chegarem a Wynwood estão a Dorsch GalleryBernice Steinbaum Gallery, em 2000.

Grafite no muro de Wynwood, Miami - foto: Renato Salles
Grafite no muro de Wynwood, Miami – foto: Renato Salles

O segundo fato, que só foi acontecer em 2006, foi o interesse do bairro pelo figurão do mercado imobiliário Tony Goldman, um dos responsáveis pela recuperação de áreas como South Beach (Miami) e o Soho (NY). Goldman começou a comprar galpões, casas e terrenos abandonados no bairro em 2006. Em 2009, ele aproveitou a abertura do festival Art Basel para inaugurar um dos seus projetos mais arrojados até então: Wynwood Walls. Esse pequeno miolo de quadra, esmagado entre os muros dos vizinhos, que seria entregue a artistas para que fosse completamente grafitado. A ideia de Goldman era que toda a vizinhança, até então decrépita, cheia de galpões fechados sem janela, se tornasse uma enorme tela para a arte de rua, e que a partir disso o bairro se tornasse um centro artístico a ser explorado por pedestres – uma enorme galeria de arte gratuita a céu aberto.

Grafite das Tartarugas Ninja no bueiro de Wynwood, Miami - foto: Renato Salles
Grafite das Tartarugas Ninja no bueiro de Wynwood, Miami – foto: Renato Salles

Deu certo. Nos últimos 8 anos, Wynwood viveu uma explosão de arte, cultura, entretenimento e, claro, preços. Estabelecimentos recém-chegados ofereceram suas fachadas para artistas reconhecidos e novos, enchendo as ruas de cor e de gente. Por lá já passou gente do calibre de osgêmeos, Kenny Scharf, Ron English, Invader e Obey (aquele do poster azul do Obama escrito “HOPE”). O bairro hoje conta com mais de 70 galerias, coleções e museus, além de restaurantes, cafés, bares, casas noturnas, lojas elegantes e mais. Todo segundo sábado do mês acontece o Wynwood Artwalk, um evento público em que monitores caminham pelas ruas para mostrar o melhor da arte e do grafite da região.

Varanda do Panther Coffee em Wynwood, Miami - foto: Renato Salles
Varanda do Panther Coffee em Wynwood, Miami – foto: Renato Salles

Wynwood é um exemplo claro de que arte de rua tem valor, e muito. O grafite é a melhor interface que existe hoje entre a arte ‘superior’ que vive fechada em museus e o cidadão comum, que tem pouco tempo para dispor para apreciá-la. É a arte mais democrática, que está disponível gratuitamente todo o tempo. Nos muros, nos portões, na calçada, no asfalto. Ela acontece espontaneamente, conversa com os elementos urbanos. E as pessoas sabem disso, e a valorizam. Construir ‘grafitódromos’, na minha opinião, é uma ilusão pouco exequível. O grafite nasce da vitalidade da rua, da espontaneidade do lugar. Encarcerá-la em espaços fechados designados para isso tem o mesmo efeito de assistir os pobres animais selvagens em zoológicos. Você tira o ambiente natural do objeto, e isso o desconfigura completamente. Você vê o leão triste no fundo da jaula, e compra um deprimente suvenir na saída.

Rua com grafites em Wynwood, Miami- foto: Renato Salles
Rua com grafites em Wynwood, Miami- foto: Renato Salles

No meio da polêmica com o prefeito Dória, um canteiro no Largo da Batata foi pixado com os dizeres: “Não dê vexame, São Paulo não é Miami“. A contar pela história de Wynwood, eu acharia lindo ver São Paulo se espelhar por Miami. Lá a arte de rua foi oferecida à cidade, e a cidade saudou sua beleza. Aqui temos alguns poucos (e felizes) casos de grafites bem recebidos. Vexame é acabar com o pouco de temos.

Arte de rua nos muros do Wynwood Walls, Miami - foto: Renato Salles
Arte de rua nos muros do Wynwood Walls, Miami – foto: Renato Salles

Update: Lembrei da requalificação da Quinta do Mocho, na periferia de Lisboa, através de grafites.

*Foto do destaque – Renato Salles